sexta-feira, 20 de março de 2020

Crônica - O homem de três corações

Por: Giovani Iemini*


Desde cedo me acostumei com a reação das pessoas quando eu contava
que meu pai era de Três Corações – cidade do Pelé!
Me envaidecia, a maioria das cidades de pessoas que vieram
para Brasília era desconhecida. A do meu pai não, lá tinha
nascido uma das celebridades mais famosas do mundo.


As outras eram Beatles e Jesus Cristo. Meu pai, cristão, adorava
os Beatles mas, curiosamente, não gostava muito do Pelé –
o negão nunca fez nada pela cidade.
Eram os anos oitenta, Pelé ainda não descobrira o marketing
de se mostrar “um homem de três corações”.

Os anos passaram, as ações humanitárias e pacíficas do Pelé
confirmaram-se legítimas e originais, sua imagem firmou-se
com uma amplitude superior a do atleta do século.
Sua cidade tornou-se quase nazarena, uma meca do
profeta boleiro. 

Meu pai continuava não gostando dele – agora se
aproveita da imagem da cidade.
Me divertia essa bronca desmotivada. Eu estava ainda mais satisfeito
com a ligação da minha família com uma personalidade
tão mundial.
Então, inauguraram uma estátua enorme do rei no balão de entrada
da cidade.

Ele está socando o ar, sua pose mais conhecida, contudo,
pitorescamente, parece também estar jogando uma pedra.
Alguns, maldosamente, dizem que joga uma pedra sobre
Três Corações.
Meu pai detesta a estátua. Afinal, qual seria o motivo de
seu desprezo? –
contra o Pele? Nada. É um grande sujeito, pessoa nobre.

Finalmente entendi a visão tricordiana de meu pai.

Ele era orgulhoso de Três Corações, independente do Rei do
Futebol também ser dali.
Achava que a cidade fez mais pelo atleta que o atleta por ela,
era como se nascer em Três Corações fosse uma vantagem
para o Pelé, não o contrário. Mesmo que ele não se tornasse
quem é, ainda seria um favorecido por ter nascido lá.

Para meu pai, quando o Pelé entendeu isso, ele se aproveitou da
cidade sem oferecer nada em troca, diretamente ou não,
pois a cidade não ganhou com sua imagem, embora seja
a Nazaré do Nascimento, nunca houve o lucrativo turismo
ou algum benefício do estado.

Essa percepção era partilhada por todos: o Pelé era um cara legal, 
mas como todos os outros da cidade, era apenas mais um abençoado
tricordiano, agraciado pela felicidade e o marketing de 
ser uma pessoa de Três Corações.

E eu compreendi que o orgulho que eu sentia ao descobrirem que
meu pai nasceu em Três Corações era similar. 
Não era o Pelé que tornava a cidade especial, era o meu pai.
O verdadeiro homem de três corações era ele.
Ele era meu pai, oras, para mim, a pessoa mais famosa do mundo.


*Giovanni é escritor, mora em Brasília (DF), é filho de João Flávio Iemini e neto da professora 
Clotilde Iemini de Rezende Brasil.





fonte: http://www.giovaniiemini.blogspot.com/
http://bardoescritor.blogspot.com/
 http://otricordiano.blogspot.com.br/2012/02/cronica-o-homem-de-tres-coracoes-homem.html

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