domingo, 8 de julho de 2012

O POETA E O REI.


POR:GUILHERME GUARCHE

No dia 19/11/1969, Pelé marcou o milésimo gol de sua carreira incomparável no mundo da bola, e o poeta Carlos Drummond de Andrade, em homenagem ao feito do Rei do Futebol, assim se manifestou nos dias anteriores a conquista do Rei.
Pelé: 1.000
“O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É difícil fazer um gol como Pelé. Aquele gol que gostaríamos tanto de fazer, que nos sentimos maduros para fazer, mas que diabolicamente, não se deixa fazer. O gol. Que adianta escrever mil livros, como simples resultado de aplicação mecânica, mãos batendo máquina de manhã, à noite, traseiro posto na almofada, palavras dóceis e resignadas, ao uso incolor?.
O livro único, este não há condições, regras, receitas, códigos, cólicas que o façam existir, e só ele conta – negativamente – em nossa bibliografia. Romancistas que não capturam o romance, poetas de que o poema está se rindo a distância, pensadores que palmilham o batido pensamento alheio, em vão circulamos na pista durante 50 anos. O muito papel que sujamos continuaria alvo, alheio às letras, que nele se imprimissem, pois aquela não era, a combinação de letras que ele exigia de nós. E quantos metros cúbicos de suor, para chegar a esse não-resultado!
Então o gol independentemente de nossa vontade, formação e maestria? Receio que sim. Produto divino, talvez?
Mas se não valessem exortações, apelos cabalísticos, bossas mágicas para que ele se manifeste...
Se é de Deus, Deus se diverte, negando-o aos que o imploram, e, distribuindo-o a seu capricho, Deus sabe a quem, às vezes, um mau elemento. A obra de arte, em forma de gol ou de texto, casa, pintura, som, dança e outras mais, parece antes coisa-em-ser natureza, revelada arbitrariamente, quase que à revelia de instrumento humano usado para a revelação. Se a obrigação é aprender, por que todos que aprendem não a realizam? Por que só este ou aquele chega a realizá-la? Por que não há 11 Pelés em cada time? Ou 10, para dar uma chance ao time adversário?
O 'Rei' Pelé (foto) chega ao milésimo gol (sem pressa, até se permitindo o charme de retificar para menos a contagem) foi uma totalidade à margem do seu saber técnico e artístico. Na realidade, está lavrando sempre o mesmo tento perfeito, pois outros tantos menos apurados não são de sua competência.
Sabe apenas fazer o máximo, e quando deixa de destacar-se no campo é porque até ele tem instante de não-Pelé, como os não-Pelés que somos todos.
O mundo é feito de consumidores, servido por alguns criadores. O desequilíbrio é dramático, e só não determina a frustração universal porque não nos damos conta de nossa impotência criativa e até nos iludimos, atribuindo-nos uma potência imaginária. Ainda por um absurdo desajuste, a criação, em muitas áreas, nem sequer é absorvida pelos consumidores em carência. Muitos seres não sabem consumir, vegetando em estado de privação inconsciente. Para o consumo, sim é necessário aprendizado. Mas os milhões de analfabetos, subnutridos e marginalizados, dos mundos ocidental e oriental, não desconfiam sequer de que há alimentos fascinantes para fomes não pressentidas. Afortunadamente no caso de Pelé, a comida de arte que ele oferece atinge o paladar de todos. O futebol é desses raros exemplos de arte corporal e mental que promovem a felicidade unânime, embora dividindo a massa de consumidores em grupos antagônicos. Antagonismo formal, pois a fusão intima se opera em torno da beleza do gesto, venha de que corpo vier. Os mil gols de Pelé são um só, multiplicado e sempre novo, único em sua exemplaridade. Não sei se devemos exaltar Pelé por haver conseguido tanto, ou se nosso louvor deve antes ser dirigido ao gol em si, que se deixou fazer por Pelé, recusando-se a tantos outros. Ou ao gênio do gol, que se encarnou em Pelé, por uma dessas misteriosas escolhas que a genética ainda não soube explicar, pois a ciência, felizmente ainda não explicou tudo neste mundo ”.

FONTE: SANTOS FC

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